A DITADURA DAS FINANÇAS
João
Martins Pereira
Combate, Out. 1992
[...] O facto é que estamos bem longe dos
tempos em que os economistas, mesmo os de pendor mais liberal, se debruçavam
sobre os problemas do crescimento e do desenvolvimento económicos, como questão
central do seu ofício. E nem se discutia o pressuposto de que era ao nível da
“economia real” que se gerava a “riqueza colectiva” (bens e serviços, públicos
e privados, e os rendimentos para os adquirir) enquanto o sector financeiro se
destinava, no essencial, a fazer circular os recursos monetários dela
provenientes e a facilitar a sua aplicação em novos investimentos. A noção de
“investimento” era dominantemente “física” e “social” (aplicação de recursos em
áreas económica e socialmente reprodutivas).
Como recordava recentemente um cronista
de uma revista económica portuguesa, os três grandes motores do crescimento
económico foram então definidos como: o investimento em capital fixo
(infraestruturas, equipamento, maquinaria); o melhoramento qualitativo dos
recursos humanos (instrução de base, educação avançada,
formação profissional) inovação tecnológica (que então se designava por
“progresso técnico”). A transformação do crescimento em desenvolvimento
implicava juntar a esses motores a dimensão política, social (redistribuição) e
cultural.
A esta atitude não era alheia a memória
dos anos sombrios que se seguiram ao crash da Bolsa de Nova York em 1929, isto
é, dos perigos de deixar “embalar” a especulação financeira, em patente
divórcio com a realidade económica. Os mecanismos keynesianos anti-crise
conheceram por isso um enorme sucesso após 1945, até aos anos 70. E a presença
de uma esquerda actuante e influente (nomeadamente marxista) manteve uma
inegável pressão no mesmo sentido, será bom não esquecer.
Hoje, na esteira dos anos 80
ultraliberais [...] tudo mudou. Instalou-se, perigosamente a “ditadura das finanças” [...]. Investir, nos nossos dias, passou
a significar “fazer aplicações financeiras”, isto é, comprar papéis e com isso
multiplicar o dinheiro sem qualquer actividade socialmente proveitosa, enquanto
“investidores” são os que a tal desporto se dedicam. E isto, que é chocante em
si, é-o tanto mais quanto maiores são as carências nos planos económico e
social [...].
A Bolsa nunca passou de um Casino (assim
lhe chamou Jacinto Nunes nos tempos de euforia) onde se procuravam fortunas
fulgurantes.
Entretanto, os chamados “novos grupos
económicos” de base industrial, que fizeram milhões durante o boom da
especulação bolsista (1986/87), ganharam-lhe o gosto e diversificaram as suas
actividades justamente para a área financeira, para o imobiliário, para a
distribuição, deixando praticamente de investir na indústria.
[...] O mundo financeiro parece pairar
acima da “economia real”, mas não paira. Basta ver como a revalorização do
escudo nos últimos anos, de raiz essencialmente especulativa, atingiu
fortemente as nossas indústrias exportadoras (disso é feita, em parte, a tão
falada “crise dos têxteis”). Basta saber que as empresas, como sempre sucedeu,
dependem, para o seu financiamento do sistema financeiro e dos seus comportamentos
(estes tantas vezes manipulados por interesses nebulosos, políticos ou outros).
E também que os famosos “critérios de convergência” nominal de Maastricht,
dominantemente financeiros, teriam, a serem cumpridos, um papel decisivo sobre
as economias, de algum modo perpetuando o status quo da hierarquia de níveis de
desenvolvimento entre os países europeus (e tanto mais quanto os famosos Fundos
Estruturais e de Coesão social serão agora, pós 20 de Setembro quase uma
quimera). Enfim, que os rendimentos gerados (sabe Deus como) em todas essas
múltiplas actividades de circulação do dinheiro acabam, mais tarde ou mais
cedo, por descer ao mundo em que se produzem e compram bens e serviços, para
adquirir os seus “sinais exteriores de (nova) riqueza”, que são coisa que
alguém teve de produzir.
É justamente por isso que é preocupante a
“ditadura das finanças”: a economia real ficou em posição de simplesmente andar
a reboque de interesses que se preocupam sobretudo com o mero “jogo do
dinheiro”, e quase nada com as questões do crescimento, do desenvolvimento ou
dos problemas colectivos (considerados não só numa óptica quantitativa, mas
sobretudo qualitativa). [...]
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