Portugal, uma economia em ponto de viragem:

entrevista a João Martins Pereira [por] Nuno Crato.

A Voz do Povo, 31 Ag. e 7 Set. 1979.

 

“A estrutura das forças produtivas mantém-se praticamente idêntica”

 

João Martins Pereira, engenheiro, ex-assistente do actual Instituto Superior de Economia, secretário de Estado da Indústria e Tecnologia no IV Governo provisório, é um estudioso dos problemas económicos portugueses com diversa obra publicada.

Na entrevista que hoje transcrevemos aborda diversos temas candentes, desde a análise das transformações reais provocadas na economia portuguesa no período pós-25 de Abril e suas implicações no Portugal de hoje, até aos confrontos entre os diversos projectos económicos e a integração europeia.

Portugal, uma economia em ponto de viragem – é o tema geral deste depoimento com que se prossegue a série de grandes entrevistas.

Entrevista conduzida por Nuno Crato

 

Voz do Povo – Antes de entrarmos propriamente no objecto desta entrevista (que se centra sobretudo nos problemas actuais da economia portuguesa), seria talvez útil traçar uma panorâmica das principais diferenças entre a situação económica antes e depois do 25 de Abril.

 

João Martins Pereira – Se compararmos a economia portuguesa hoje com o que era no período que precedeu o 25 de Abril podemos dizer, primeiro, que a estrutura das forças produtivas se mantém praticamente idêntica, o que não é de surpreender, pois as alterações de estrutura só são detectáveis a médio/longo prazo; é contudo importante salientar que nunca houve desde o 25 de Abril uma intenção clara, assente num projecto global consistente, no sentido de alterar essa estrutura e que, a continuar idêntica tendência, será o processo de integração europeia a determinar tal alteração – e essa será provavelmente profunda e comandada exclusivamente do exterior pelos mecanismos do mercado internacional, logo, da divisão internacional do trabalho. Segundo, importa notar que houve importantes alterações nos domínios das relações jurídicas (ou aparentes) de produção, já que a propriedade dos meios de produção fundamentais (a terra alentejana, grandes empresas de sectores básicos) foi subtraída aos seus anteriores proprietários privados e está hoje directamente nas mãos do Estado ou de colectivos de produção. Terceiro, no campo das reais relações de produção, económicas e sociais, há que distinguir: no domínio das relações sociais de produção, houve indiscutíveis modificações, quer devido às novas formas de propriedade e exploração da terra por colectivos de trabalhadores, quer em termos de relação de poder nas empresas (aliás muito variáveis segundo com a sua dimensão, natureza e localização), quer, sobretudo, no campo da liberdade de acção sindical e da legislação laboral. Enfim, no domínio das relações económicas de produção, pode dizer-se que não houve alterações essenciais: é o mercado, nacional ou internacional, ou o Estado, por meio de uma política de preços sem consistência e não sujeita a qualquer tipo de planificação (pelo contrário, sujeita a regras impostas pelo FMI, e portanto inspiradas na mais rígida ortodoxia teórica, visando uma cada vez maior liberalização dos mecanismos do mercado), que determina a formação ou não formação de excedentes nos vários sectores, e que dessa forma anárquica “orientam” a produção, a acumulação e a repartição.

Resta acrescentar que, no domínio da distribuição dos rendimentos ainda se verifica hoje, relativamente a antes do 25 de Abril, uma estrutura mais favorável às categorias de mais baixos rendimentos e mais desfavorável às de mais altos rendimentos, mas a evolução previsível não é particularmente animadora. Finalmente no domínio da dependência externa, pode afirmar-se sem discussão que ela é hoje substancialmente mais constrangedora (por ter uma importante componente financeira, traduzida por uma elevadíssima dívida externa) do que antes do 25 de Abril.

 

VP – Apesar do retrocesso hoje verificado foram em 1975 tomadas medidas de certa importância. Poder-se-á, contudo, falar em medidas de carácter socialista?

 

JMP – Foram tomadas medidas, ou desencadeadas acções, que são condição de um avanço no sentido socialista – mas como este se não fez, e ele é sobretudo do domínio do político, elas vieram a perder esse carácter, digamos, subjacente. Elas  foram, ainda assim, vastas e contundentes (e basta pensar na terra e na banca), pelo que a burguesia portuguesa, que ainda não conseguiu “reencontrar-se”, até agora apenas foi capaz de agir por omissão ou obstrução. Serviu-se do poder político para não planificar, fazendo perder o sentido primário de uma apropriação de meios de produção visando uma transição para o socialismo, para criar dificuldades aos sectores nacionalizados ou geridos colectivamente (nomeadamente na zona da Reforma Agrária) e, sobretudo para desprestigiar, com óbvios efeitos políticos, o sector público e criar dele uma imagem de desperdício e desgoverno de que, é claro, é ela própria a responsável. Mas o verdadeiro ataque ao sector público ainda está para vir. Convém, aliás, sublinhar, que a burguesia portuguesa, habituada aos antigos proteccionismos e reservas de actividade, nem sequer se tem mostrado capaz de, tal como em outros países, pôr o sector público decididamente ao serviço da acumulação privada.

 

VP – Mas, em definitivo, quem detinha o poder económico antes do 25 de Novembro e quem o detém hoje? Em função disso, justifica-se, por exemplo, pedir sacrifícios aos trabalhadores no período da “batalha da produção”?

 

JMP – Dado que depois do 11 de Março, o poder económico se encontra essencialmente nas mãos do Estado ou sob seu controlo, a resposta à sua pergunta não é mais do que uma tentativa para identificar a natureza de classe do poder político desde então. Ora nem sempre é fácil caracterizar a natureza de classe dos poderes provisórios em fases pré-revolucionárias como a que precedeu o 25 de Novembro. Mas, se atendermos não só à composição partidária dos Governos provisórios, mesmo depois do 11 de Março, ao seu comportamento político sempre buscando compromissos impossíveis, e, enfim, à forte componente militar do regime da altura em que pontificavam jovens oficiais de extracção pequeno-burguesa, generosos mas inexperientes, poderemos admitir tratar-se de um poder político assente numa pequena burguesia cuja fracção radicalizada imaginou por um tempo poder liderar as lutas populares e a conquista do poder pelos trabalhadores. O próprio comportamento do PCP não pode ser excluído desta mesma perspectiva: ora moderando e refreando os movimentos reivindicativos, sobretudo no campo industrial, ora radicalizando certas acções, como sucedeu a partir de certa altura no domínio das ocupações de terras, sem ter em conta as relações de força reais e as alianças indispensáveis (nomeadamente com os pequenos camponeses). Daí que a acção do PCP tenha vindo finalmente a poder ser interpretada como uma simples estratégia de conquista de posições nos aparelhos de poder que, por não ter sido levada a termo, acabou por ser pouco duradoura e politicamente contraproducente. Isto, se excluirmos a hipótese, que julgo absurda, de que a sua estratégia tenha visado exclusivamente assegurar uma descolonização (em particular em Angola) favorável a interesses que lhe são internacionalmente afins.

Resta acrescentar que, nestas condições, se tornaria impossível, como foi, uma mobilização maciça dos trabalhadores para a aceitação de sacrifícios ou para uma batalha de produção, cujas contrapartidas eram duvidosas, estando no poder quem estava.

Depois do 25 de Novembro, é ainda a pequena burguesia, liberta da sua fracção “radical”, que se instala no poder pela mão do PS. A sua prática política torna-o evidente, sem ser necessário explicá-la em pormenor. Os governos subsequentes, os chamados de iniciativa presidencial, já se encontram mais próximos dos interesses de uma grande burguesia que, no entanto, não detém, de facto, o poder económico. Mas essa grande burguesia “fantasma“, ideologicamente pujante, se não mesmo dominante, ainda se vê obrigada, no plano político, a uma acção desconexa e pouco segura, muito apoiada  na “classe política” pequeno-burguesa, justamente porque não detém, ela própria, o poder económico: escapam-lhe as fontes fundamentais de acumulação e o poder financeiro.

O actual Governo é, nesta perspectiva, claramente de transição: na sua  composição é predominantemente tecnocrata – e já recentemente demonstrei as afinidades entre o projecto político-económico de um Sousa Franco e o do efémero governo Nobre da Costa –, enquanto na sua linguagem, sobretudo a da primeira-ministra, é a de um idealismo missionário, de raiz católico-progressista, muito virado para as questões sociais. Julgo que nenhuma das coisas constitui, na actual situação portuguesa, um projecto sólido, isto é, representativo dos interesses de uma base social suficientemente  ampla. Mas podem, um ou outro, ou ambos, ser embriões de projectos ainda por definir.

 

VP – Poder-se-á, apesar disso, falar hoje na existência de um sector “não capitalista”?

 

JMP – Não penso que se possa dizê-lo. Todos os sectores estão submetidos à lógica do sistema capitalista. O que existem é sectores, ou unidades produtivas, em que os trabalhadores aceitam voluntariamente, para manter o seu controle sobre elas e para ter o sentimento de que não têm patrão, fazer os sacrifícios que, de outro modo, lhes seriam impostos por um patrão. É de algum modo, em escala certamente maior, o mesmo que sucede com as cooperativas que existem em qualquer país capitalista. Tais sectores ou unidades produtivas estão obrigados a submeter-se às regras do jogo capitalista, pela via do sistema de preços e sob pressão dos detentores do crédito (o Estado), sob pena de estrangulamento ou falência. Isto faz com que, ainda que dentro de uma dada unidade produtiva possam existir relações de trabalho mais motivadoras e de solidariedade colectiva, a lógica a que a produção está submetida não é de nenhum modo a de um objectivo planificado e colectivamente assumido, em sintonia com todos os outros trabalhadores, mas a de uma sobrevivência ameaçada por um poder político que, em lugar de apoiar a sua acção (técnica, financeira e politicamente) e procurar generalizá-la dentro de um quadro de planificação, tenta obstruí-la e dispõe de meios poderosos para o fazer: os preços, o crédito, a não-assistência técnica e a GNR.

Quanto ao sector público propriamente dito, não creio que alguém julgue possível designá-lo como “não-capitalista”: simplesmente a sua propriedade não está em mãos privadas. Isto pode ser politicamente importante, mas não é suficiente para lhe dar esse carácter, como já referi acima.

 

VP – Voltando ao problema dos detentores do poder económico: qual o papel das multinacionais na economia portuguesa?

 

JMP – Nunca existiu em Portugal um poder económico concentrado por parte de nenhuma multinacional. Neste aspecto, por exemplo, o caso português  é substancialmente distinto do caso chileno, ou de outros países em que o peso de uma só ou poucas multinacionais é esmagador na sua economia (ex. Firestone na Libéria, United Fruit em várias repúblicas centro-americanas, etc). Em Portugal isso nunca sucedeu: sem abundantes matérias-primas de valor estratégico, Portugal nunca interessou os grandes potentados mineiros ou os gigantes do petróleo; com um mercado de pequena dimensão, também não atraiu as multinacionais do automóvel ou dos electrodomésticos, que preferiam ter aqui os seus agentes comerciais (as pequenas linhas de montagem de automóveis, impostas por uma legislação aberrante, nunca representaram interesses importantes e apenas serviram para ir mantendo uma posição comercial no mercado português). O único recurso nacional que poderia interessar as multinacionais – a mão-de-obra barata – foi utilizado também em unidades de   pequena dimensão e com um capital mínimo, sobretudo nos sectores da electrónica, das confecções, dos instrumentos de precisão, etc. De qualquer modo, os interesses em Portugal de cada multinacional individualmente eram bastante reduzidos e com pouco peso na economia nacional.  Como excepções apenas se pode apontar os interesses estrangeiros numa LISNAVE, no sector da celulose, no do material eléctrico pesado, e pouco mais. Mas aí, se excluirmos o caso da SIEMENS, não se tratava de multinacionais.

Aliás, basta ver como actuaram as multinacionais depois do 25 de Abril para compreender o que acabamos de dizer. De facto, nenhuma multinacional, por si só, dispunha em Portugal de poder suficiente para se lançar em operações como as da ITT ou das empresas do cobre no Chile, nem, de resto, os seus interesses aqui o justificariam. Mas tão-pouco lhes interessava facilitar a vida a governos que lhes não davam a garantia de poder prosseguir as suas actividades como até então. Sendo assim,  restava-lhes fazer o que fizeram: quer acções conjuntas, quer a criação de sucessivos problemas, que obrigassem os governos a ter permanentemente de “acorrer a fogos”, que lhes não desse tempo para definir e aplicar políticas globais. Apenas alguns exemplos: pouco depois do 25 de Abril todas as multinacionais do sector da electrónica ameaçaram cessar a sua actividade em Portugal, o que representaria mais de 20 000 trabalhadores no desemprego. Quanto à ITT, sabe-se os problemas que criou através da Standard Eléctrica, mas nem todos conhecerão que, já depois do 11 de Março, “descobriu” uma enorme crise na construção civil na Alemanha, pelo que a sua subsidiária naquele país que assegurava a compra das torneiras produzidas na Oliva, deixou de poder adquirir essa produção. É essa mesma ITT que, já depois do 25 de Novembro, faz ao governo tais reivindicações de compensações pelos prejuízos sofridos (!) que o secretário de Estado da Indústria do I Governo Constitucional, Trigo de Morais, se vê obrigado a pôr fora do seu gabinete  o enviado da ITT a Portugal – do que resultou... a saída do Governo do eng. Tito de Morais. Outro caso pouco conhecido é, na mesma linha, o anúncio pela General Motors, em Junho de 75, da decisão tomada pelo seu Conselho de Administração de cessar a sua actividade de montagem em Portugal: a mesma G.M. que, posteriormente, expandiu essa actividade e se vangloria hoje de estar a exportar novos fabricos realizados em Portugal!

E por aí  adiante: foram numerosos os casos de multinacionais que se propunham vender as suas unidades ou participações ao Estado Português, o que obrigava, de cada vez, a ter de estudar o assunto, consultar o Ministério das Finanças, etc. etc.

Em resumo, foi uma autêntica estratégia de desgaste, única possível nas condições de “pulverização” dos interesses das multinacionais, mas que teve obviamente a sua eficácia.

Resta acrescentar que podemos estar a assistir a uma viragem neste campo: o projecto Renault é verdadeiramente o primeiro projecto importante de uma multinacional em Portugal. E o da Ford, cuja situação neste momento não é clara, sê-lo-ia igualmente. Estes investimentos são de natureza a inserir-se harmoniosamente no “projecto tecnocrático” de que já falei, mas para o qual ainda não se vê claramente quais os interesses nacionais que o suportarão.

 

VP – Estando os problemas económicos na base, afinal, das contradições políticas, como se devem interpretar os diferentes projectos económicos? Ou seja, é possível identificar os principais partidos políticos com modelos económicos bem definidos e, a ser assim, qual a viabilidade de tais modelos?

 

JMP – Não é fácil responder de forma sucinta a essa pergunta. Mas, se começarmos pelo PS, até ver, o maior dos partidos hoje existentes, não custará constatar que não tem qualquer modelo económico bem definido: teve perto de dois anos para aplicar  as suas ideias nesse domínio e foi o que se viu. Não esboçou qualquer tentativa nem sequer para planificar o sector público produtivo, e era o menos que se podia exigir a um partido que se diz socialista. Pelo contrário, pareceu muito mais interessado em deixar jogar livremente as forças do mercado, mas sem que se visse em quem pretendia apoiar-se: dado o  número de trabalhadores que constitui a sua base eleitoral, era-lhe difícil apoiar-se claramente nos sectores patronais... Ficou-se, então, na total ambiguidade: fez aprovar leis do agrado patronal, mas depois protelou a sua regulamentação e aplicação. As actuais preocupações eleitorais obrigam-no a manter a mesma ambiguidade e indefinição. Daí que não possa evitar a imagem de partido de “clientelas”, a quem sobretudo interessa ter lugares para distribuir pelos seus fiéis, muito mais do que fazer propostas concretas e críveis no domínio económico ou noutro qualquer.

Por isso quando se fala em modelos económicos em confronto, ou mesmo em “modelos de sociedade”, o que se põe geralmente é um modelo assente no mercado, ou mais intervencionista (social-democrata) ou mais liberal – que, no caso português, tenderiam a ser representados respectivamente pelo PSD e pelo CDS –, e um modelo de planificação central ou “colectivista”, que em Portugal seria representado pelos partidos que se reclamam do marxismo-leninismo, como o PCP e a UDP.

Ora tudo isto é demasiado sumário e, sobretudo, é indispensável ter presente que não existe sistema económico desligado do sistema político e das relações de forças sociais. Sucede que o  contexto português é, como já disse, muito peculiar: os mecanismos económicos são de natureza capitalista (é o mercado que comanda a produção), enquanto que as fontes principais de acumulação não são privadas mas estatais ou “colectivas”. Um sistema de mercado livre exigiria que estas últimas fossem, pelo menos em boa parte, privadas, o que é politicamente inviável dentro dos quadros democráticos; um sistema de planificação central exigiria uma relação de forças a nível político  que não se afigura provável de atingir a curto prazo. Destas “impossibilidades” resulta que as propostas dos partidos são, de facto, inconsistentes e oferecem pouca credibilidade. Tem-se especulado muito sobre o descrédito em que tem vindo a cair o sistema partidário: talvez isso tenha que ver  com a imagem que dão de serem simples máquinas de chegar ao poder, mostrando-se incapazes de propor soluções articuladas e compreensíveis para problemas enunciados com clareza e sem demagogia.

 



CONCLUSÃO DA ENTREVISTA COM JOÃO MARTINS PEREIRA

Voz do Povo, 7 de Setembro de 1979

 

Revisão Constitucional:

em causa a recomposição de monopólios

 

A formulação das aspirações de classe da burguesia não se traduz

ainda em nenhum projecto global

 

Prosseguindo a série GRANDES ENTREVISTAS concluímos neste número o depoimento de João Martins Pereira sobre os problemas económicos com que actualmente se debate a sociedade portuguesa. Na primeira parte publicada no número anterior da “Voz do Povo”, o nosso entrevistado passou em revista as alterações na economia portuguesa provocadas pelo 25 de Abril, analisando as medidas dos governos provisórios e dos governos posteriores ao 25 de Novembro. Nesta segunda parte abordam-se sobretudo as consequências da política do FMI e da integração europeia.

Entrevista conduzida por Nuno Crato

 

VP – Verifica-se pois que existe um emaranhado de contradições que dificulta a identificação precisa de cada partido com determinado projecto económico bem demarcado. No entanto, a cada projecto político-económico correspondem certos interesses e determinações internacionais. Sendo a contradição entre os grandes partidos bastante visível e relativamente aguda não é possível identificar melhor os interesses de classe ou de fracções de classe, e as nuances entre os correspondentes projectos económicos que lhe estão na base?

 

JMP – A resposta a essa pergunta ultrapassa largamente o âmbito e a extensão desta entrevista e, nas condições presentes, não poderia deixar de situar-se ao nível das meras hipóteses. Na realidade, como já acentuei, a classe normalmente dominante num sistema capitalista estável é uma grande burguesia tendencialmente monopolista que arrasta ideologicamente classes e fracções de classe que, estando-lhe “sujeitas”, beneficiam dos compromissos políticos e económicos que aquela lhes assegura e patrocina. Ora, em Portugal, deixou de existir uma “grande burguesia monopolista”: a luta política tem-se aliás ultimamente desenrolado em torno da questão crucial que é a da existência ou não de condições para que ela se reconstitua, entre os que pretendem criá-las e os que se lhe opõem. O debate sobre a revisão constitucional é isso no essencial, e por isso as posições se vão radicalizando à medida que ela se avizinha. Ora sucede que, por um lado, os que se opõem a essa reconstituição não se apresentam como “classe dominante alternativa”, o que implicaria um projecto alternativo suficientemente mobilizador. Por outro lado, as classes e fracções de classe que logicamente seriam favoráveis a tal processo não se identificam com qualquer projecto ou com qualquer partido e, dada a confusão geral que envolve a colocação das questões (com uma forte componente eleitoral), nem sequer se mostram capacitadas da necessidade de “compromissos”. Um caso evidente é o da CAP, que continua a oscilar entre o PR, o PSD, o CDS e sabe-se lá quem mais. A formulação das aspirações de classe está ainda numa fase primária, de tipo reivindicativo, incapaz de se traduzir num projecto global, ou de aderir a um que lhe seja proposto. É mesmo este, conjugado com a ausência de alternativa, um dos grandes perigos da situação portuguesa. Não o conseguindo as forças políticas existentes, corre-se o risco de ver aparecer um qualquer “grande unificador” dos vários interesses dispersos da burguesia, em nome de coisas tão simples como a lei e a ordem.

 

VP - Como se encaixa nesse quadro a intervenção do FMI e, a mais longo prazo, a política de integração na CEE?

 

JMP – Tudo isso tem obviamente que ver com essa mesma indefinição e é um corolário imediato dela. Foi o facto de o PS enquanto governo (VI  Provisório, I Constitucional) não ter tido qualquer “projecto”, ter deixado a economia “entregue a si própria”, não ter utilizado o “poder económico”  de que o Estado dispõe, e se ter preocupado muito mais com eleições do que com soluções, que tornou inevitável o recurso humilhante ao FMI e a hipoteca de Portugal, por gerações, aos credores externos.

Para o Fundo, o problema português é o de um corredor descontrolado, a todo o momento em risco de cair, e a quem o treinador diz: “O melhor é parar e depois recomeçar”. Dados os desequilíbrios vários na economia, trata-se de a fazer “estagnar”, e a partir daí o mercado livre, quanto mais livre melhor, se encarregará de manter os equilíbrios indispensáveis e de dar à economia a mais adequada configuração dentro do mercado mundial. É aqui que a lógica do Fundo é, finalmente, muito coincidente com a lógica da integração europeia: esta só será possível se a economia portuguesa tiver previamente sido “saneada” por um FMI, e ela própria (integração), ao inserir Portugal num mercado livre europeu, promoverá a “reestruturação” de uma economia mais compatível com os seus recursos.

A prosseguir a mesma incapacidade de utilizar o poder económico público para definir e aplicar um projecto económico autónomo, a continuar a “vontade de dependência” que chega a assumir os mais caricatos traços de autoflagelação, o melhor que poderá suceder a Portugal é tornar-se numa segunda Irlanda, parente pobre dos Nove, que é hoje o pasto privilegiado de tudo quanto é “multinacional” neste mundo, que está a pagar por uma razoável “prosperidade económica” o preço de uma total entrega ao “capital sem pátria”, de uma dependência que bem poderá vir a desembocar a prazo numa aniquilação cultural.

 

VP – Mas é concebível, afinal, num país como o nosso, uma política económica de independência e desenvolvimento?

 

JMP – Devo desde logo dizer que, no estado em que os governos PS e seguintes colocaram a economia portuguesa, em particular no domínio do endividamento externo sem contrapartida no investimento produtivo, cada dia que passa se torna mais restrito o espaço de manobra de um governo que viesse a preocupar-se com o problema da independência. E também convém explicitar de imediato, para que não haja equívocos, que não existe independência absoluta, que não se trata (nem creio que alguém já o tenha proposto) de uma política de isolamento ou de economia totalmente fechada.

Mas o que há, indiscutivelmente, é graus de dependência e, sobretudo, há – ou não – critérios de decisão fundados na maior ou menor dependência dela decorrente. Ora é um facto que o grau de dependência português tem assustadoramente aumentado, por um lado, e por outro que nas decisões tomadas não intervém qualquer critério tendente a privilegiar as que impliquem “menor dependência”. Pelo contrário, não só os senhores do FMI mas também os do Banco Mundial, vêm aqui dar ordens ( e não estou a exagerar: conheço o espírito de beata submissão com que as autoridades e gestores públicos acolhem estes senhores, que chegam a trazer “Planos” para substituir os inexistentes planos portugueses!). As próprias empresas estrangeiras que aqui vêm concorrer a trabalhos e projectos trazem hoje uma “arrogância” que só é explicável pelo facto de conhecerem até que ponto as suas concorrentes nacionais não recebem qualquer apoio, mesmo quando pertencem ao sector público! Noutro plano, a ânsia de investimentos estrangeiros aparece de tal forma desmedida, que é fácil aos candidatos negociarem em posição de força, e instalarem-se com mais reduzida participação nacional.

Enfim, o menos que se pode dizer é que a inversão desta “vontade de dependência” é algo que nos seria perfeitamente acessível, e que isso seria, de qualquer modo, o ponto de partida indispensável para formular uma política de desenvolvimento centrado sobre os nossos próprios interesses. Tal política teria de assentar sobre o máximo aproveitamento dos recursos naturais, uma rigorosa planificação do sector público produtivo e das formas de controlo sobre o conjunto da economia, uma diversificação das relações externas (e as ex-colónias portuguesas são “parceiros” naturais que tudo se tem feito por afastar – e não é por acaso) e sobretudo numa motivação colectiva só possível se as grandes massas se reconhecerem e participarem na definição dos objectivos da comunidade, isto é, se estiverem convictas de que os sacrifícios necessários serão feitos em defesa das gerações futuras e não – como até agora – dos bolsos dos “novos ricos da democracia”. É bem claro que nenhuma das forças políticas hoje candidatas ao poder tem nada que ver com tal projecto. Ele só pode ser o de uma “nova esquerda” que infelizmente se não vislumbra. Mas as suas propostas estariam tão próximas daquilo em que cada um dos portugueses desejaria acreditar, daquilo por que cada um estaria disposto a bater-se que não devemos excluir a hipótese de que ela surja e ganhe uma dinâmica que hoje nos parece improvável.