Não quero falar da EXPO

Público, 21 Abril 1998

 

Porque a EXPO é um acto de culto - e isso são coisas que não se discutem. Culto fremente do passado, dos antepassados, a EXPO andou a evitá-lo durante os anos de gestação, escondendo-o quanto possível por detrás dos omnipresentes Oceanos. Assegurada assim a conveniente “paz dos espíritos” (lição de Sevilha, entre outras), chegou-se nos últimos meses à fase épica, que dir-se-ia preparar o êxtase final da chegada triunfante do Gama aos Olivais, compensado enfim em merecido alvoroço das humilhações de há 500 anos. Descobrimentos, Descobertas, Orientes e quejandos inundam as páginas dos jornais, dando nome a tudo , rotas, caminhos, cais, provas desportivas, ciclos culturais, iniciativas sem conta. Os nomes dos “heróis do mar” são agora preferidos aos de estrangeiros infiltrados na própria toponímia da EXPO : os John Lennon ou Júlio Verne estavam ali de empréstimo, na fase soft em que se pretendia seduzir eventuais recalcitrantes. Os conteúdos dos grandes pavilhões, sabe-se agora, estão impregnados da epopeia quinhentista, a ponto de nos ser oferecido sentir virtualmente as emoções por que passaram os navegantes de antanho (ser-nos-ão poupados, porventura, os Adamastores, os enjôos, os escorbutos). Volta a falar-se, lembrando esses tempos exaltantes, no “orgulho de ser português”, coisa que de há anos para cá só tem aflorado por vezes à boca do Dr. Soares. Esta onda patrioteira, de óbvia dimensão política, engloba aliás muitos outros agentes, públicos e privados, vindo já de há uns tempos atrás : Ponte Vasco da Gama, Fundação das Descobertas,  avenida Lusíada, linha de Metro “Caravela”, programa Infante, sorteio Rota das Índias, toponímia do CCB e do Colombo, etc. Uma tal histeria faz-nos, na verdade, recuar várias décadas atrás - mas quantos se lembram ainda da “EXPO” de 1940, do manual do Mattoso (pai) e do “Deus, Pátria e Família” ? Será que os portugueses precisam mesmo, como sugere um pensador ilustre, de um banho periódico de identificação com a “glória passada”, e com “o Mar”, do qual seríamos o mais íntimo dos povos, para sobreviver na pequenez dos dias que correm ? Quando por cada chafariz ou árvore arrancada se tem de preencher um fartote de formulários para obter um subsídio, faltarão razões, e ânimo, para exercícios de  “auto-estima” colectiva - concedo. E certamente isto não são pormenores de que uma EXPO se fosse ocupar. A EXPO prefere saltar sobre esse presente desencantado e entregar-se, em simultâneo, a outro culto : o do futuro.

 

Que futuro ? O da ciência de ponta e das altas tecnologias, com relevo para as tecnologias da informação que “aproximarão os cidadãos de todo o mundo”, e para as ciências do ambiente, suporte do empenho universal na defesa da natureza, com os Oceanos à cabeça, evidentemente. Na verdade as tecnologias avançadas estão muito mais ao serviço dos negócios mundializados, das estratégias dos actores  da economia global. E , para esses, as questões de aproximação dos povos ou de defesa do ambiente não são prioritárias, sendo negócios antes de mais, como outros quaisquer, numa mera lógica de mercado. “O comércio é a grande arma do desenvolvimento e a competitividade a palavra-chave” é o slogan mais na moda nesses meios : Clinton foi anunciá-lo ao continente africano no seu périplo de Março. Mas a EXPO vai mais longe. Ela vem anunciar a Portugal e ao mundo que este já é “um país do futuro”,  desse futuro mitificado, o dos “vencedores” na competição internacional. Os dois cultos combinados resultam numa mensagem global do tipo “fomos GRANDES, logo somos GRANDES, e GRANDE é o nosso futuro”. E muitos dos que visitarem a EXPO, não duvido, inebriados pela ousadia das construções e das viagens virtuais a que serão sujeitos, saírão penetrados da sensação momentânea de que essa empolgante utopia está ao nosso alcance, e de que é esse mesmo o futuro desejável. O reencontro com a realidade quotidiana mostrar-lhes-á, de novo, que não é esse o país onde vivem.  E talvez lá voltem mais uma, duas, três vezes, para de novo viverem essa ilusão - no dia seguinte, como “depois do amor”, a vida continua. As altas tecnologias estarão à sua disposição, importadas, sob a forma de bens de consumo, e endividar-se-ão para não ficarem  atrás do vizinho ou do colega de emprego. Sobre a aproximação dos povos, ouvirão discursos inflamados,  mas nem se darão conta de que é ainda de negócios que se está a falar. E sobre a defesa da natureza, muitos torcerão o nariz de pensar que Portugal possa ter o mínimo papel a representar no plano mundial, quando escorrem à sua porta efluentes de empresas que lhes inferneziam as vidas. Portugal não é grande, nem é pequeno - é o que é, e não tem condições, no quadro actual, para ser muito diferente. Basta pensar nos salários : mantêm-se a 1/3 dos europeus, e os políticos esquecem sistematicamente este critério essencial de desenvolvimento, na vertigem das convergências nominais. Ainda ninguém conseguiu demonstrar que tais salários, pela varinha mágica do euro, possam convergir alguma vez. E é disso que vive a larga maioria dos portugueses, bem como dos níveis precários da habitação, da educação ou da saúde - outros tantos critérios de convergência ignorados.

 

Não quero falar da EXPO.

 

Porque a EXPO é consensual - e os consensos custam muito a conseguir. É a pura verdade. Mas os grandes consensos podem ser inquietantes, e não é por acaso que a essência das democracias está nos conflitos (confrontação de ideias, de interesses, de poderes), não nos consensos. Mais inquietantes ainda quando se geram à volta de um potentado financeiro, como é o caso da EXPO, por poder conduzir a que boa parte do consenso não seja mais, de facto, do que uma espécie de “comércio” dos silêncios. É pelo menos estranho que um empreendimento como a EXPO não tenha praticamente gerado controvérsia, nem sequer uma reflexão crítica, à parte um tímido debate inicial e a persistente animosidade dos portuenses, mas essa apenas fruto do bairrismo militante que se conhece. Estranho, sobretudo, é o silêncio, quando não o rasgado encómio, por parte dos “fazedores de opinião”. Antes de mais, a comunicação social que, em termos críticos, só verdadeiramente se preocupou com questões de detalhe, mas que dão manchetes : se o orçamento vai ou não ser cumprido (coisa que o próprio Presidente minimizou), se os acessos e os pavilhões estarão prontos a tempo, se o Comissário saía ou não saía, etc. Para além disso, a cobertura tem sido fortemente apologética, sobretudo nesta fase final, às vezes chegando a tocar o ridículo ao desejar criar um “clima de simpatia” em torno da obra (como aquela jornalista tão comovida com a harmonia do casal Torres Campos, após 40 anos de vida em comum). Aliás sucede com a EXPO o mesmo que com a Europa, o euro, as virtudes do mercado, a mundialização : são dados adquiridos, não se discutem. As poucas vozes pensantes, que as há bem poucas no caso da EXPO, surgem como óbvias excepções que confirmam a regra, e vêm sempre do exterior. E é aqui que surge o segundo grupo de “fazedores de opinião” : aquilo a que em tempos se chamava a inteligentsia, a gente das artes, das letras, do pensamento, de onde sempre partiram, quer se queira quer não, os grandes debates, as críticas, a reflexão. Aí, a EXPO foi radical : contratou-os (caso dos arquitectos, entre outros) ou convidou-os, oferecendo-lhes condições de realização, para iniciativas culturais nas mais diversas áreas, em muitos casos projectos com que talvez sonhassem, sem meios para os pôr de pé. Só numa terra de gente ascética ou casmurra isto não teria resultado em cheio. Esta mobilização geral das energias criativas, cujos resultados muitos de nós já fruíram ou fruirão, teve, contudo, há que reconhecê-lo, o efeito preverso de deitar fora o bébé com a água do banho : um debate vivo e estimulante sobre a EXPO tornou-se praticamente inviável. Isto com a EXPO numa posição inatacável : não foram postas quaisquer condições, não se pediu silêncio a ninguém, muito menos que fizessem promoção do empreendimento - do que não duvido em absoluto. Recordo ainda outro efeito da dita mobilização. Uma escritora contou que, reticente a princípio, aderiu inteiramente à “ideia da EXPO” no dia em que soube que um artista que muito aprecia tinha sido contratado para lá trabalhar : “se ele lá está é porque aquilo é excelente”. Imagine-se agora este  efeito de propagação multiplicado por todos “os que lá estão” e pelos respectivos admiradores - “eles” são a caução, e não se pensa mais no assunto. Longe de mim negar o consenso em torno da EXPO, que é real e diariamente podemos observar. Apenas me interrogo sobre se a forma como a ele se chegou não tem mais que ver com a lógica do mercado do que com o esclarecimento decorrente da discussão democrática. 

 

Não quero falar da EXPO.

 

Porque a EXPO é uma grande operação de ordenamento, e isso é o que mais tem faltado em tantas vilas, cidades e espaços naturais por esse país. A EXPO tem sido apresentada como forma única de viabilizar a recuperação urbana da Zona Oriental da cidade. Na verdade, desde que o caminho de ferro e o desenvolvimento do porto cortaram a cidade do rio, gerações de lisboetas sonharam poder um dia viver e acordar diariamente à beira-Tejo, saber-lhe, como nos tempos antigos, os cheiros e os humores. O que não se diria mais tarde do autarca alfacinha que tivesse tido a ousadia de fazer seu esse sonho ? De ter mobilizado para esse projecto os melhores arquitectos (muitos deles dos tempos do SAAL, não assim há tanto tempo), os melhores gestores e organizadores, os melhores paisagistas e artistas - os mesmos que fizeram a EXPO ? Aí teríamos, sim, um novo espaço urbano de habitação e lazer a que toda essa gente gostaria de deixar ligado o seu nome, numa Zona Oriental enfim restituída à cidade, ao lisboeta comum. Só que esta, sim, empolgante utopia esquece a distância que vai do urbano ao imobiliário, da política ao mercado. Isto é, esquece o imenso «valor de mercado» desses terrenos em situação privilegiada e com elevados custos   de preparação. Por isso mesmo só ali medrarão, pela mão da EXPO, edifícios destinados às classes alta e média-alta e a estrangeiros, capazes de pagar (juntamente com as empresas, hotéis, marinas e outros negócios que lá se instalarão) tudo isso e, de caminho,  uma boa fatia dos custos da própria EXPO -  na hipótese optimista de tudo correr como previsto. Em contrapartida, só a vontade política e o empenho colectivo poderiam ter levado de vencida a mera lógica do mercado. Mas não é esse o «espírito do tempo» : em lugar da Lisboa boa para se viver, em que cada um dos seus habitantes sinta a cidade como coisa sua, prevalece o conceito, que arrepia, da «Lisboa competitiva», a cidade-produto que compete com as outras cidades europeias na atracção de estrangeiros (empresas, negócios, turistas). É essa a política que temos. Quanto aos lisboetas, que se passeiem aos domingos por esse abastado «Bairro dos Descobrimentos», contraponto democrático do velho «Bairro das Colónias».

 

Não queria ter falado da EXPO.

                                                                                               João Martins Pereira

 

 

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