João Cravinho fala sobre João Martins Pereira
(Transcrição directa da intervenção no colóquio)

Muito obrigado. Em primeiro lugar, o meu profundo agradecimento à organização e ao Prof. Rui Bebiano por me ter convidado. Aceitei sem hesitação e também, no momento seguinte, depois de ter aceite, disse: “Mas que ousadia e que desfaçatez”.

E devo dizer para já, logo de imediato, que estou aqui como um amigo do João Martins Pereira, um amigo de mais de 50 anos. Na altura em que estivemos os dois no Ministério da Indústria, já tínhamos vinte anos de convivência, de grande amizade e em relação a essa situação de amizade com o João Martins Pereira, eu gostaria, para não perdermos tempo, de entrar num aspecto da personalidade do João que acho extremamente relevante.

Conversámos muito enquanto estivemos no Técnico, conversámos muito nos primeiros anos após o Técnico quando ele estava em Portugal; nessa altura esteve na Alemanha e na Áustria a fazer um estágio prolongado, mas de qualquer maneira, descontando essa interrupção, encontrávamo-nos muito frequentemente, e conhecem o João, e sabem de facto o que significava o convívio, digamos assim, com ele. Durante todo o período seguinte nunca houve entre nós nenhuma situação que ficasse mal esclarecida, que tivesse necessidade de qualquer complemento, aclaramento, ou fosse o que fosse. E em todo o caso, eu, tirando o período de passagem no governo em que estávamos os dois alistados num batalhão que procurava fazer qualquer coisa muito especial num período em que o MFA é que de facto tinha o alto comando, pois, tirando esse período, eu nunca militei ao lado do João, por exemplo, na Gazeta, naquele combate que ele prosseguiu, depois, por exemplo, quando ele teve uma intervenção mais política ou mais politizada desde o Combateaté à participação, como o Louçã lembrou aqui há bocado, mas nunca estive com ele nesses combates e em todo o caso isso não fez a menor diferença na nossa amizade e no nosso convívio. É raríssimo que se possa dizer isto de alguém tão empenhado, ao mesmo tempo tão determinado, e tão consciente do que estava em jogo em cada momento. E isto é uma característica absolutamente singular que me parece importante realçar porque a objectividade, a incapacidade total em que ele estava de se orientar por labelos ou por rótulos regimentais, é de facto um grande sinal de grandeza e ao mesmo tempo uma garantia que ele pôs no exercício concreto da sua militância e dos seus combates cívicos, dos seus combates políticos. Eu creio que se trata aqui de um traço de carácter absolutamente exemplar para quem se empenha nos grandes combates ideológicos do nosso tempo. E gostaria de realçar isto.

A seguir gostaria de falar de dois aspectos profissionais, ou antes, característicos da vida do João. Fizeram-se várias referências aqui, mas relativamente episódicas e descontinuadas, à sua vida profissional. E eu creio que merece a pena dar muito mais realce à sua vida profissional como fonte de alimentação, fonte de conhecimento, fonte de transformação das suas próprias ideias, não só de aquisição mas de transformação ao longo do tempo.

O João foi um aluno do Técnico distinto, premiado, e no seu curso o melhor aluno. Um homem que ganhou um prémio altamente cobiçado no Técnico, um prémio dedicado ao melhor aluno de Mecânica, mas para quem não conhece a Mecânica do Técnico, a Mecânica tem a ver com Matemáticas superiores, e não propriamente com nada que ver com outros ramos, há engenheiros mecânicos [...]. Mas de qualquer maneira o João ganhou o prémio, não é?, e saiu do Técnico como uma referência entre os melhores estudantes que o Técnico tinha tido até aí. Isto significava que ele tinha uma base muito sólida, teórica, quer nos conhecimentos absolutamente fundamentais físicas matemáticas, quer naqueles que diziam respeito àquilo que constituía o tema central da sua profissionalização, a química propriamente dita. Bom, com esta bagagem o João começou – depois de um pequeno episódio que aliás está relatado e que tem uma característica interessante também que é o facto de nesse pequeno episódio se demonstrar que quem dá o pão dá a educação, isto é, que quem paga um salário tem direito quase que à alma do sujeito que estava ali assim ao seu serviço, coisa que o João não era de facto partidário disso e que resolveu pelo método mais simples e também mais coerente e portanto também mais efectivo, foi-se embora, não é? Foi-se embora, não é?, e entrou na Siderurgia Nacional. Eu digo isto por uma razão. A Siderurgia Nacional na época era um empreendimento que estava a nascer absolutamente extraordinário à escala da economia portuguesa, não só pela sua dimensão como pelo enormíssimo salto tecnológico que essa indústria representava em Portugal, a ponto de o Ferreira Dias dizer que “um país que não tem siderurgia não é país”. E aquela era o resultado de uma batalha prolongadíssima para que o país fosse país, tivesse siderurgia. E o João vai para a Siderurgia Nacional para montar uma das unidades fundamentais da SN, a aciaria, de maior responsabilidade e talvez aquela que representaria, à parte talvez da laminagem, mas tanto como a laminagem, ou até talvez mais, o grande salto tecnológico. E também um grande salto de gestão concreta de operações fabris. Eu penso, e na época falei muito com ele, e olhando um pouco o que era o panorama da nossa indústria, fazer uma siderurgia num país que tinha ainda uma indústria eminentemente de base rural, ou de manufactura relativa de processo relativamente simples, é de uma violência, é como violentar um corpo, enxertando nesse corpo um elemento absolutamente de ruptura com tudo o que era a experiência anterior. E isso formou no João, ou deu ao João, de facto, uma experiência de que poucos se poderiam, digamos assim, teriam tido acesso a ela, entre os engenheiros, jovens engenheiros portugueses, ele estava naquele número muito restrito que tinha tido essa oportunidade e que a tinha aproveitado. Tendo ele próprio determinado a si mesmo que sairia ao fim do processo de instalação e da sua entrada em cruzeiro, e ao fim de nanos, três, ele saía. Isto, reparem, quem entra numa aventura destas poderia ficar preso. Ele não quis ficar preso. A ideia dele de estar, digamos, acima destas coisas, liberto para seguir aquilo que em cada momento ele achava que era o seu próprio curso de acção, mais uma vez é de assinalar. E então a partir daí o João vai para a Venezuela, fazer o quê? no fundo gerir uma empresa, também um bocado complicada, uma indústria um bocado complicada, de vidro, que estava em dificuldades, era propriedade dum dos Gallos, salvo erro, que era um dos industriais do vidro da Marinha Grande e ele vai para lá, vai montar, ou antes, vai viabilizar, e que estava em fase de indefinição quanto ao seu futuro, e põe aquilo tudo a funcionar, com a ideia logo à entrada de que estaria em Caracas, não é bem em Caracas, mas próximo, o tempo suficiente para pôr aquilo a funcionar, para amealhar um pé de meia e ir para Paris estudar sociologia financiado pelo exercício da sua função na Venezuela.

São elementos todos eles que mostram o percurso singular construído de fase a fase de uma maneira verdadeiramente original, de ruptura com aquilo que era o paradigma das trajectórias de bons alunos, de bons profissionais.

E quando ele regressa de Paris ele entra num campo que merece especial atenção para aquilo que foi depois o pensamento dele. Ele foi trabalhar em projectos industriais, em estudos de sector em que a componente de tecnologia tinha alguma expressão ou muita expressão e foi trabalhar, portanto, no terreno da modernização prática concreta de transformação do tecido industrial português. Quer dizer, de início, Siderurgia, que é um facto excepcional e tido como um altíssimo exemplo de grande transformação, em ruptura. Depois num campo diferente, tecnologia, sistema, combinação de análise económica e introdução de organização e método, ao serviço de projectos, uns grandes, outros pequenos, ao serviço de estratégias sectoriais, que depois teriam de difundir e aplicar a nunidades, mas todas elas dirigidas àquilo que é o sector da média empresa essencialmente, em colaboração com consultores internacionais, que começavam a olhar para Portugal como um mercado, visto que a industrialização desde os anos 50, de facto, seguia a bom ritmo e isto começava a ter um certo mercado e era gente que trazia um cabedal de conhecimentos e, digamos, um acervo de tecnologias modernas e isto coincide com um período em que as indústrias de processo estavam em ampla transformação elas próprias e onde a inovação era contínua e o João trabalha com essa gente.

Reparem, alguém disse aqui que quem é, digamos, tecnólogo, ou engenheiro de tecnologias, engenheiro e economista micro, é evidente que estava ali para reparar, não era, era para transformar, para modernizar o sistema. E nessa questão da modernização punham-se escolhas várias, e as tecnologias apesar de tudo têm um certo leque dependendo das circunstâncias e algumas das tecnologias eram nascentes, que há sempre aquilo que se diz: foi experimentado alguma vez? Foi experimentado uma vez. Ou então, não foi experimentado mas isto vai dar resultados seguros. Portanto, o problema da modernização no caso em que ele foi praticante era visto sob a forma de um confronto de alternativas, de opções que teriam de ser perspectivadas num horizonte de dez anos para se saber escolher [...]. E eram vistas não como uma importação em pacote, toca a aplicar, mas como fundamentalmente um problema de absorção, como então se dizia, de pegar na tecnologia e tomar posse dela e fazer a sua gestão evolutiva ao longo de anos e anos à frente. E quando se disse há bocado “este país não tem organização”, se eu bem apreendi, um dos problemas é a falta de organização sob várias formas. Eu digo o seguinte “este país não tem é João Martins Pereira em grande quantidade”. E naquela época ainda menos. E tudo quanto se diz sobre a nossa burguesia, por exemplo, o Champalimaud dizia uma coisa que deixava o João varado, mas que era assim:   olhava para – o Champalimaud era um homem da indústria dos cimentos – e então discutia com o Nobre da Costa se o investimento devia ser de um milhão, ou um milhão e meio, ou dois milhões, se deviam estar 200 operários numa secção ou numa unidade ou se deviam estar trezentos. E ele olhava para o Nobre da Costa e dizia: “isto é, como se fossem três cimenteiras e vem você dizer a mim que isto é assim ou assado”. O outro que já sabia alguma coisa da indústria da siderurgia olhava e “Com um patrão destes o que é que eu posso fazer?” E o Champalimaud era de longe o mais audaz e o mais visionário em termos de carteira própria de todos os empresários portugueses da época, mais até que os Melos.

Vejam o ambiente em que ele se formou e formou-se, digamos assim, no terreno, por mérito próprio ou por autodidactismo e por, digamos, por uma certa osmose com os tais consultores estrangeiros, mas digamos numa percepção e compreensão e absorção duma realidade que de facto tinha para nós todos esta questão: não era assim, a industrialização portuguesa fazia-se por imitação, quer dizer, um tipo tinha dez teares, se tivesse vinte era melhor do que ter dez, tanto mais que o vizinho do lado já tinha trinta. Mas, o problema punha-se assim e ele estava a trabalhar de outra maneira. Bom, este conjunto de situações a que eu aqui referi, para dizer duas coisas: rigor, preparação de base fundamental, rigor, racionalidade e ao mesmo tempo uma capacidade de escolha num horizonte, num quadro, de dez, quinze anos à sua frente. E por outro lado capacidade de trabalhar complementarmente com outros profissionais que evidentemente nestas questões os problemas que surgem resolvem-se em equipas por vezes multidisciplinares. E isto é uma característica que enformou a sua concepção do sistema económico português, não se limitando aos grandes empreendimentos, não extrapolando indevidamente a observação A ou B para todo o campo, ele sabia a enorme diferença que havia entre os mais diversos tipos de actividades industriais e os mais diversos tipos de unidades industriais dentro do mesmo sector. Isto aparece muito nítido na visão que ele tem do sistema económico português, do seu futuro e das articulações que se estabeleciam, e as mediações que se estabeleciam, entre a burguesia, não, os burgueses, de vário tipo e os planos, digamos, de sobrevivência ou de dominação já em intersecção com o poder político. Esta é a primeira questão que vos queria dizer.

A segunda, ou antes, as duas [...] a experiência e a importância que isso teve na vida de pensador e de homem de acção.

Agora, como o tempo não é longo – quando se está numa mesa sozinho tem-se a ideia que está tudo na minha dependência, mas não quero que me comecem a chutar com os pés, não quero isso, vou a um segundo ponto que é o seguinte:

Nós falámos aqui do que o João escreveu, a importância que teve o seu primeiro livro Pensar Portugal, de 71, depois os outros pós-revolucionários, as diversas produções que ele foi fazendo à medida que a situação política portuguesa evoluía, falámos todos disso, de uma maneira ou de outra, como eu disse, eu vim como amigo, não vim como crítico, comentador, ou, digamos, profundo intérprete do seu pensamento. E aí, à medida que vos ia ouvindo a todos, ontem, muito interessante, eu vim para ouvir, e ouvi o que disseram, e às duas por três dei por mim às vezes a imaginar, sequencialmente, situações, digamos assim, de tipo diferente, o que é que diria o João hoje, a propósito disto, a propósito daquilo.

E acho que é muito importante perceber que o João deu um contributo enorme no seu tempo e é aí que está, digamos, a importância dele, como a importância da sua exemplaridade de método, de rigor e de carácter, não é? Mas, no seu tempo.

Eu tenho a certeza que se o João estivesse aqui hoje a discutir, digamos, os últimos acontecimentos históricos e os outros, ele, tenho a certeza de que ele nos surpreenderia às vezes com revisões do seu próprio pensamento. Tenho um pouco a noção do que é que o levaria a isso, como nos surpreenderia porventura com extensões novas, enquadramentos, que de facto se poderão retirar um pouco da sua obra, mas que não estão lá. Eu, há bocado dizia-se que o João previu a crise. Bom, o João tinha a noção das contradições e do carácter insustentável das grandes forças determinantes do sistema que nós conhecemos e que ele conheceu ainda bem, porque, como sabem, ele esteve connosco até à relativamente pouco tempo. Se previu a crise e se entendeu a crise, eu devo dizer que penso que não. Alguns dirão que isto é um lesa não sei o quê, para mim não é lesa nada, é homenagem ao João.

Porque não quero pôr a questão quase como anedocticamente, desculpem, alguém dizia, quando se faz agora o balanço da crise: mas quem é que previu a crise? E aparece uma lista com cinco ou dez gatos e sabe-se dos economistas que previram a crise e alguém [...] mas quem previu ainda mais o fundo da crise foi o Cardeal Ratzinga. E o que fez o Cardeal Ratzinga? E o que é que fez o Cardeal Ratzinga? Em Munique, na Baviera, escreveu [...] em 1985, 88 ou 90 fez um ensaio sobre os desvarios do mundo moderno dizendo: “Isto vai acabar mal”. Foi um dos primeiros que percebeu a essência da questão.

Ora bem, o João tinha outra dimensão e outra profundidade. Ele percebeu perfeitamente as falhas do sistema capitalista mundial e percebeu perfeitamente que aquilo teria de ser rectificado ou teria dado um resultado qualquer absolutamente penalizador para todos, a mecânica exacta ninguém previu. Tal como agora temos umas noções de que estamos à beira de uma segunda ou terceira grande crise, mas sabemos, apontamos as baterias para coisas que já são óbvias, mas porventura haverá um ou dois ou três factores que estão hoje, digamos assim, de certa maneira a crescer ou a entrecruzar-se e que virão a ser os despoletadores, se não forem mesmo os fios condutores, de uma nova crise.

Bom, o João hoje poderia pôr a questão. Então, se ele estivesse a escrever o Pensar Portugal, hoje, o que é que ele fez com o Pensar Portugal Hoje? Foi de certa maneira dizer à esquerda, meus caros amigos, vocês têm uma série de tipificações e de casos de fundo, não é bem isso, o país evoluiu, o país transformou-se e hoje as linhas de força, as dinâmicas, passam por aqui e por acolá. Ora bem, eu julgo que a sociedade portuguesa nos últimos vinte anos transformou-se muito, e falemos só de coisas importantes. A questão do analfabetismo, ou se quiserem do stock de educação difundido na população ao nível educacional, é hoje totalmente diferente do que era há 20 anos. Bom, se quiserem outro aspecto importante: O que é que as pessoas de certo modo nos últimos 20 anos ou 25 valorizaram, digamos assim, no sistema político-administrativo que os circundava? Valorizaram extremamente o Estado Social, incipiente embora, que nós tínhamos, de uma maneira que nós só temos consciência precisamente dessa grande valorização que as pessoas fazem pelo facto de hoje se estar a cortar no Estado Social e as pessoas perceberem que não é possível uma vida digna e decente com aqueles cortes que ainda estão, se calhar, longe de chegarem ao seu ponto de equilíbrio, segundo quem nos rege hoje.

Outra coisa que apareceu de novo é o seguinte: nós temos uma situação em que o enorme problema da nossa burguesia é que não foi capaz de transformar a sua hegemonia numa poderosa e competitiva capacidade empresarial. Esse é que é o grande problema. Se nós tivéssemos esse problema resolvido não tínhamos crise financeira, não tínhamos a crise das finanças públicas senão como fenómeno de terceira ou quarta ordem. O que os mercados, sejam eles o que forem, já lá vamos, dizem é que estes tipos não crescem. Não é que as nossas finanças públicas estão muito deterioradas, não dizem isso. Eles sabem perfeitamente que a nossa dívida pública por maior que seja é vencível se houver crescimento. O que eles dizem é que estes tipos por nanos à frente não vão ter crescimento. E porque é que não vão ter crescimento? A gente assiste todos os dias a debates profundíssimos sobre a questão da competitividade. Devo dizer que cada vez que assisto a um debate desses só me dá vontade é de morrer. Se me permitem, para não morrer, porque é sempre uma coisa chata, e pelo contrário para reverter a imagem, vou-vos dizer que a situação portuguesa é uma situação típica da história do almirante Villeneuve. O almirante Villeneuve era o chefe da esquadra de Napoleão no Mediterrâneo, refugiava-se sistematicamente na Andaluzia para fugir aos combates. Ele estava desesperadíssimo. E o Villeneuve mandou, estava tão desesperado que o homem teve de dar uma explicação, vamos lá ver se eu convenço o homem, se não isto acaba mal, para ele. E então despachou um certo número de oficiais do seu estado-maior que foram explicar por que razão é que ele se tinha refugiado quando o Nelson apareceu nas costas da Andaluzia. Meteu-se em Cádis e não saía de lá nem a tiro. E ele então explicava que por duas ou três vezes a esquadra de Nelson de facto apareceu na costa, e suficientemente próxima para que ele pudesse rapidamente confrontá-la, mas o combate era impossível. Então era impossível porquê? Era impossível porque o Nelson, que ia disposto a combater, e era um táctico absolutamente fabuloso, ele percebeu imediatamente que a maneira como ele organizou a linha, a esquadra de linha, tornava a manobra extremamente difícil e o combate quase extremamente desigual, não é?, ou difícil, porque ele tinha tomado um certo tipo de precauções.  Depois observou que nessa altura o vento estava em condições tais que ele, de facto, sair de Cádis, ir ao encontro do Nelson, que por sua vez já estava organizado de tal maneira que, então, o vento não o ajudava, pelo contrário, dispersava-lhe a esquadra, fazia [...], se ele tentasse a manobra. E depois notou, em terceiro lugar, que, de facto, [...] aqui, influência um pouco de Gibraltar,  correntes brutais que naquela altura do ano, naquele momento, não sei quê, e depois acrescentou o último elemento que era assim: e finalmente os nossos navios tinham um stock de pólvora muito baixo. Ora bem, a questão da competitividade é essa, os nossos navios, as nossas empresas não têm pólvora. E então fala-se de tudo, dos custos com o resto, com isto e aquilo e aqueloutro, os salários que é preciso baixar para aumentar a competitividade, como se uma baixa de salários fizesse pólvora.

Ora bem, o nosso amigo João Martins Pereira hoje não deixaria de colocar a questão central da competitividade num mundo globalizado e aberto. Como não deixaria de procurar responder àquela pergunta que o coronel, o coronel Carlos Matos Gomes, colocou, o problema como militar, quer dizer, o que é que é a questão fundamental para o militar “Quem é o inimigo?”. Isso ensinam-nos a nós milicianos, quem é o inimigo?, primeiro; segundo, qual é o terreno?, terceiro, quais são os meios?. Ora bem ele diz “Onde está o poder?” E reparem que há 20 anos, há 30 anos, há 40 anos, nós sabíamos onde estava o poder, não é? O João estudou a questão nacional, e, portanto, era no âmbito nacional que se localizava o poder. Hoje quando a gente pergunta “Onde está o poder?” ou responde de uma maneira que de certo modo evoca, convoca, aliás, fragmentos do poder e da língua, mas não é – uns mais sabidos outros menos, lá dirão, o poder está aqui. 

Ora bem, e entrando agora numa outra linha, a questão, digamos, do Estado, e dos mercados. O que é esta história dos mercados, quem são esses sujeitos que nos mandam, nos dizem, põem? O que é o Estado? Para que serve? Como de facto intervém? Ora a esquerda desde que o SPD se transformou em arauto da social-democracia e renunciou à transformação revolucionária, teve mais ou menos o seguinte mote: o Estado tanto quanto for necessário, o mercado tanto quanto for possível. Estado, mercado. Mais estado menos estado, mais mercado menos mercado, melhor Estado, raramente, mas sempre aparecem, o melhor mercado também. Também há quem diga. Mas a realidade é que nesse quadro, digamos assim, que é quase de soma zero, isto não é o quadro da realidade, é muito diferente da realidade. Hoje em dia o problema é que temos o Estado, é verdade, temos o mercado, é verdade, ou os mercados, e temos as empresas financeiras globais. E a introdução das empresas financeiras globais transforma radicalmente o quadro de análise e o quadro de definição do inimigo, dos recursos e das finalidades. Porquê? Porque essencialmente, e há muitos outros aspectos ligados a isto, as empresas globais o que fazem é capturarem o Estado. Portanto, não estamos a falar de três entidades autónomas num triângulo qualquer de relações, estamos a falar de uma nova realidade estruturada e estruturante em que as empresas financeiras globais capturam o Estado e, por sua vez, abusando dessa captura, manipulam os mercados. Os mercados são criaturas das empresas financeiras globais. Não são os mercados dos livros, da concorrência perfeita do dr. Vítor Gaspar ou [...]. Nada disso, não tem nada a ver com o assunto. São entidades que estão hierarquizadas, estruturadas, a partir do poder das empresas financeiras globais. E aqui aparece um outro contexto extremamente importante que é precisamente de que, no fundo qual é a dificuldade de localização de poderes ou se quiserem onde se deve localizar o poder. O poder está naquela triangulação hierarquizada estruturada e não em três entidades autónomas. E por outro lado tem uma expressão que é a globalização, mas não é uma globalização como a foi a do século XIX. É a híper-globalização, com a introdução na esfera comandada, no fundo, em última análise, pelas empresas financeiras globais de mais de seiscentos milhões de trabalhadores, com direitos sociais mínimos, salários mínimos, níveis de subsistência mínimos, mas fazendo produtos cada vez mais sofisticados, mais sofisticados do que aqueles que Portugal é capaz de fazer, com salários dez vezes inferiores, conquistando os mercados dos próprios países que são, digamos, a sede das empresas financeiras globais. 50 a 60% – os números variam consoante os anos – mas desta ordem de grandeza das exportações chinesas, são exportações controladas pelo complexo, digamos assim, organizado a partir das sociedades financeiras globais, inglesas, alemãs, sobretudo americanas. São exportações chinesas, o que é que os chineses lucram com aquilo? Deixam lá 10% do valor final, os outros 90%  são controlados precisamente pelos promotores primeiro dessa híper-globalização. E o problema da híper-globalização veio a estar na base da crise que nós estamos hoje aqui a tratar e verificamos que de facto aparece hoje muito boa gente, que não é radical, não é é estúpida, que é outra coisa totalmente diferente, que o símbolo máximo talvez seja o Rodrigue, a dizer, meus caros amigos, isto aqui há que escolher entre três coisas, quer dizer, há uma híper-globalização, que a gente, ou nós metemos essa híper-globalização na ordem, controlando-a, diminuindo, digamos assim, a liberdade de concentração, de acumulação que essa híper-globalização criou, a favor de poucos, com repercussões depois no plano político, que a concentração, digamos, resolve-se no plano político por maior, digamos, por maior de certo modo captura do Estado, não é?, e por maior submissão dos habitantes às regras de conveniência da maximização do lucro, da sua própria concentração, portanto, ou nós tratamos desse problema ou então temos de dizer que vamos sofrer em dois outros campos. Quais são esses dois campos? A democracia, e qual é o outro campo? É precisamente os direitos fundamentais de bem-estar das populações em geral, não é? Portanto, voltando agora aqui à questão – peço desculpa eu estou aqui a tomar tempo em demasia com isto – eu acho que isto não escaparia de certeza ao João Martins Pereira. E isto levá-lo-ia a dizer: será a questão nacional a questão relevante? A questão da burguesia nacional, será essa a grande questão? Ou, pelo contrário, eu tenho de reconhecer o seguinte, o que mais se discute hoje em Portugal, o que mais se discutia há 40, 50 anos, no antigo regime, era o problema, digamos, da democratização de Portugal tout court, fim da guerra colonial, democratização de Portugal, era uma questão nacional no verdadeiro sentido do termo. Bom, hoje em dia, a gente discute questões nacionais?, não, a gente sofre questões nacionais, mas não discute, se a gente discute alguma coisa ou se preocupa com alguma coisa é preocupar-se com a questão europeia. Alguma vez algum de nós em 1975, em 1985 quando entrou, pensou que íamos transformar ou que íamos ponderar ou que íamos pesar o que nos íamos preocupar com a questão europeia vista de Berlim, não era o caso, ou vista de Bruxelas, ou vista de Bona ou vista de Londres? Hoje a questão essencial é – a questão nacional hoje é uma componente – nós achamos que a componente fundamental é de facto a questão europeia. E se dissermos que é a questão europeia, a questão europeia, por sua vez, não é o problema do controle ou descontrole das tais grandes empresas globais e da híper-globalização a que deram lugar? O problema da regulação dos mercados financeiros é precisamente o problema de saber se, de facto, se controla ou não controla a híper-globalização e os seus actores e beneficiários. Esse é que é o problema da regulação financeira, não é?, e muito bem os ingleses, que como vocês sabem nem sequer estão no centro da grande questão europeia, perceberam, não estão formalmente, mas perceberam que na realidade estão. Mas como é visto o problema em Inglaterra, que é uma forma muito curiosa, é assim: É preciso escolher, dizem os gurus, entre a Europa, o Cameron tem de escolher entre a Europa e a City. E dizem isto com uma força enorme, brutal, não é? E isto mostra como, se calhar, da escolha do Cameron entre a Europa e a City ou da ideia de dizer, a gente marimba-se no Cameron e faz na Europa, já não é a 27 é a 17, a regulação financeira que nos interessa, impomos ou não impomos a taxa Tobin?, é isso que está em discussão, isto é, é viável uma Europa a 17 que queira ela própria existir como democracia?, é um problema que se põe hoje em dia a propósito disto. Ora bem, isto afecta-nos brutalmente, quer dizer, afecta-nos muito mais do que saber o que é que pensa um burguês que por acaso é o dono. Reparem como os nossos bancos passaram em dois meses de uma situação sobranceira e dominadora a uma situação a que nós no final de contas não conta nada. Até já estamos a escrever cartas a que ninguém nos responde. Bom, não vão ficar totalmente sem alguma protecção e sem alguma consolação, mas perceberam que já são aqui pequeníssimos actores, que não estão muito distantes em relação ao poder e às soluções de poder dos mais variados sujeitos que estão por aqui, não é? E o que é que se está a passar com este governo, o que é que este governo, é o governo de quem?, não é o governo dos banqueiros, embora, o Louçã disse para aqui umas coisas, eu não vou comentar, mas para dizer também que estas coisas não se desfazem de um dia para o outro e não se refazem, e não se baralha tudo. Há aqui uma [...] absolutamente fundamental. Mas de qualquer maneira, este governo não é um governo nacional, ou antes, não quer ser, pode ser que no fundo digam, você é, não vá a bota além da perdigota, e assuma-se como governo nacional, até lhe pode suceder isto. Já está a ir fora do guião, ninguém lhe encomendou esse sermão. Pode suceder isto e eu acho que há alguma probabilidade de vir a suceder, mas de qualquer maneira para pôr a questão, o João Martins Pereira diria: “Quais são os problemas?” Eram outros, com outra matriz, com outra raiz, não é?  E sendo assim a sua militância e os seus escritos seriam os mesmos? Seriam muito diferentes, não tenho dúvidas sobre isso. E as soluções que ele preconizou e de que foi ele próprio agente activo em que se empenhou, com certeza poderia até talvez ter-se empenhado com as mesmas pessoas, mas não era a mesma estratégia, não eram os mesmos objectivos, não era a mesma chamada de atenção e não era o mesmo tipo de mobilização. O problema da híper-globalização e o problema da questão central da Europa – o século XIX foi o século da Europa, o século XX foi o século da América, hoje já estamos no período do século da Ásia. Isto são coisas convenientes evidentemente do ponto de vista da arrumação de ideias ou da ausência de ideias, mas há ali um lastro muito forte e tem impacto muito directo e muito concreto sobre as nossas vidas. E é esse o significado do tempo presente. Quando os salários aumentam na China, e aumentam a um ritmo extraordinário, isso pode repercutir-se, dirão para bem, em Portugal? Não, não, para pior, porque acelera a inovação na China, que é o que se está a verificar, em vez de ser o facto de diminuir. Quando nós vamos à Alemanha e vamos para ganhar competitividade no corte de 30% nos nossos salários, supondo que alguém fazia isso, eu acho, bem, essas pessoas são tão cretinas que nunca entraram em dez fábricas, podem ter entrado numa. Se tivessem entrado em dez fábricas exportadoras, dez diferentes, percebiam que cortar 20% de salários a empresas que exportam por hipótese para a Alemanha onde estão a competir com os chineses que têm uma capacidade de absorção e de inovação tecnológica muito superior à nossa, e que têm salários oito vezes inferiores, é a mesma coisa que um indivíduo querer influenciar por hipótese uma grande fornalha, por hipótese de vidro ou de aço – como diria o João Martins Pereira – por meio de uma caneca que lança para uma massa de vinte ou trinta toneladas para ver se lhe altera a temperatura com aquela caneca de água, não é? Portanto, são pessoas que não sabem do que estão a falar, rigorosamente, nem conhecem os limites da sua ignorância, e é a pior das coisas que pode suceder a alguém que queira ser um bom profissional. Não tem nada que ver o que estão a dizer com aquilo que é efectivamente actuante e interveniente. Não tem efeitos? Tem imensos efeitos na distribuição de rendimento  entre capital e trabalho. Ah, mas isso não é necessariamente o mesmo que a questão da competitividade. É uma questão secundária? Não é. É uma questão vital, mas não é uma questão de competitividade, é uma questão de prolongamento da falta de competitividade, protegendo uma e acentuando uma distribuição de rendimento insustentável a médio e a longo prazo. Portanto, é o mais retrógrado, o mais dinossáurico que alguma vez se poderá dizer e é o mais falho de um grama que seja de conhecimento real da economia. Isto escaparia ao João Martins Pereira? De certeza que não. E então o que é que ele faria? Queixar-se-ia de quem? Por hipótese, do senhor A ou do senhor B ou dos banqueiros portugueses, coitados, neste caso eu até admito que estejam, não digo inocentes, mas um bocado embasbacados com a sorte que lhes vai caber. É um bocado diferente, não é?

Bom, finalmente para acabar, então o que é que a gente aprende com o João Martins Pereira? Se ele mudaria o seu pensamento? Aprende que de facto houve no João Martins Pereira uma presença, uma, direi, uma actividade, um pensamento, que em relação ao seu tempo ela é perfeitamente exemplar, pela coerência, pelo rigor, pela identificação criteriosíssima não só dos problemas, mas como até das, dos seus, digamos, modos de ataque.

Entretanto, reparem o seguinte, a sociedade portuguesa hoje é muito mais complexa do que era há vinte ou trinta anos e os próprios jovens portugueses têm de si próprios, do país e do mundo uma ideia que os jovens portugueses não tinham de maneira nenhuma há vinte ou trinta anos. Eu aqui gostaria de citar um exemplo: o que é que se passou na Letónia? A Letónia foi o primeiro dos países bálticos onde se deu uma intervenção semelhante àquela a que nós estamos agora aqui assim a ser objecto, de uma maneira mais brutal, se quiserem. Há quando? Há três anos. A partir de 2008. Bom, a Letónia levou uma dose tão cavalar no verdadeiro sentido do termo que o seu produto interno perdeu 25%. Em três anos. Bom, mas qual é no fundo o nº indicador mais impressionante, que dá mais que pensar? A Letónia perdeu 15% da sua população em três anos. Nós perdemos 10% da nossa população na década de 60, e sabemos as enormes consequências internas que daí tiveram o nascimento. Agora vejam o que é perder 15% da sua população, sobretudo jovem, [...] e gente de meia-idade, mas em três anos. Bom, nós estamos a caminho disso. Não digo 15%, não avanço nenhum número, mas é evidente que nós estamos a caminho de um êxodo absolutamente extraordinário relativamente àquilo que era a época mais recente. Portanto as transformações a que um país vai entrar são dramáticas, de certeza, são novas na sociedade portuguesa. As suas causas então são mundos de diferença daquelas que nós comentámos noutros momentos de crise nacional, ou de dúvida, ou de interrogação, sobre para onde é que vamos, que projecto podemos ter. São tudo coisas tão diferentes que eu penso que o João Martins Pereira seria diferente, mas seria diferente excepto numa coisa, no seu carácter, na sua orientação básica, na sua objectividade, no seu rigor, e na sua capacidade – que é aquilo que já foi aqui dito – o João era uma pessoa que falou-se de falar claro, dizer as coisas e não ter medo de olhar os problemas que ele próprio até não saberia resolver, chamando os bois pelos seus nomes, “isso não sei”, várias vezes ouvi o João em conversas dizer “eu vejo o problema mas como se dá a volta a isso não sei”. Fala-se às vezes aqui do João, mitifica-se um pouco, é natural, como se ele tivesse resposta para tudo. Tinha imensas dúvidas, o que não tinha era angústias, nunca vi o João com angústias, vi-o com dúvidas, vi-o com apreensões, e nunca vi o João fugir fosse ao que fosse mesmo para dizer “eu não sei como se pega nisto”. Ora bem, são homens desses que são precisos. E é preciso ter presente o João porque há muita coisa que continua perfeitamente válida. Mas mais do que tudo fica a exemplaridade de um homem no seu tempo, para que outros homens no nosso tempo e no tempo futuro o nosso tempo também é muito o tempo dele, mas nos tempos que vêm à frente, dez, quinze anos, realmente capazes de explicar de uma maneira simples e directa o que de facto anda por aí, e o economês, e o pensamento redondo dos partidos, dos dirigentes políticos, o medo e eu direi a cobardia e a pequenez mental de tanta gente ofusca. Com um factor que hoje é muito mais difícil apesar de tudo: a dominação dos meios de comunicação social pelos interesses nacionais e internacionais, portanto, meus caros amigos, viva o João Martins Pereira.